domingo, 9 de novembro de 2014

Estâncias Reunidas. Poesia. António Cândido Franco. «Estrelas de cor carnal feitas com a pele da terra. Rochas. Calhaus miúdos. Cor evaporando-se num oceano de humidade. Vejo a terra a largar a pele. O último livor do seu rosto…»

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Estâncias
[…]
«Noite dentro de mim
sem fundo e sem fim
onde o coração
faz a vez de uma estrela.
Noite íntima
cheia de trevas
onde tudo esteve sempre apagado
e se ouve só
contra a pele
o incêndio invisível de uma flor.
Noite sem lugar
onde não corre sangue
e as formas são o imaginado.
Noite sem cinza e sem luar.
Noite solar
feita de escuridão
que é a memória da luz do dia.
Formas vazias
a brilharem na plenitude de nada.
Formas nocturnas
anteriores à vida
a cintilarem na indiferença do céu.
Formas sem forma.
Escuridão de luz
que é lembrança de sangue
e luar negro
que é origem de um sol.

Noite sem coisas
feita de mistério
girando em torno da treva
e da memória.
Princípio e fim
tocando-se no negrume.
Noite com o lume no ventre.
Noite
transportando dentro de si o dia.
As palavras que há em mim
são o equivalente
desta noite inicial e muda
onde o sol se cria.
Verbo encarnado
na escuridão do meu silêncio
como uma estrela na amplidão do céu.
Há em mim um firmamento
em que as coisas perdem sangue
e ganham nome.
Na minha noite íntima
há palavras feitas de sombra
que são a memória do sol.
Ideias que palpitam
dentro de mim.
É com tinta preta
que eu digo a palavra luz.
É com a tinta escura da noite
que eu escrevo a palavra sol.
É com a tinta invisível
da memória
que eu revelo o mundo.

Onde essa tinta se derrama
a seiva escorre
e as sementes germinam.
Essa tinta desperta a luz
e acorda as pedras.
Na escuridão do meu silêncio
a palavra ressuscita
e exuma o que está esquecido.
Na caligem do meu ser
a memória faz levedar o nada.
Na minha noite íntima
a saudade acorda os mortos».
Poema de António Cândido Franco, in ‘Estâncias Reunidas

In António Cândido Franco, Estâncias Reunidas, 1977-2002, Quasi edições, biblioteca Finita Melancolia, Vila Nova de Famalicão, 2002, ISBN 972-8632-64-9.

Cortesia de Quasi/JDACT

sábado, 1 de novembro de 2014

A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «Foi ela a vítima dessa epopeia ingente que assombra pela desproporção entre as forças da nação empreendedora e os resultados alcançados. Ganha assim universal significação o simbolismo lusista ‘do pelicano’»

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«(…) Terminou por triunfar a política da expansão e a terra viu-se despovoada de gente, abandonada e bravia. As empresas marítimas absorviam todos os braços que o interior precipitava nos boqueirões dos portos. Os viajantes que na era de Quinhentos peregrinavam por Portugal são unânimes em reconhecer que a nossa economia natural deperecia, para concentrarmos toda a actividade nos misteres lucrativos mas parasitários da troca e exploração das produções orientais. E este geral sintoma observado na terra portuguesa de novo se observa em Espanha, pelo século XVI, quando o Novo Mundo, oficialmente descoberto por Colombo, possível agente secreto português (Pestana Júnior), atraiu para o torvelinho das naus os homens novos em quem chamejavam as ambições do El-Dourado. Mui a propósito invoco o testemunho do frei beneditino Benito Peñalosa Mondragon que no seu famoso e original escrito: Cinco excelencias del Español que despueblan a España para su mayor potencia y dilatación nos deixa uma pintura viva e dolorosa do estado de miséria e decadência da lavoura naquela época. Nele diz textualmente: El estado de los labradores de España en estos tiempos está el más pobre y acabado, miserable y abatido de todos los demás estados, que parece que todos ellos juntos se han aunado y conjurado a destruyrlo y a arruynarlo: y a tanto há Ilegado que suena tan mal el nombre de labrador, que es lo mismo que pechero, vlllano, grossero, malicioso y de ay baxo a quien solo adjudican las comidas grosseras, los ajos y cebollas, las migas y cecina dura, la carne morticina, el pan de cebada y centeno, las abarcas, los sayos gyronados y caperuças de bobo, los bastos cuellos y camisas de ortopa, los çurrones y toscos pellicos y çamarros […] e estas comedias y entremeses de agora los pintan y remedan haciéndolos aun más incapaces, contrahaciendo sus toscas acciones por más risa del pueblo (Pamplona, 1629).
Na glória fulva que doira de imortalidade essa hora de Quinhentos, em que as caravelas portuguesas cumprindo um destino superior à própria inteligência dos homens que as dirigiam, serviam a Civilização europeia, a terra que foi berço aos nautas comprometia na empresa a sua economia. Foi ela a vítima dessa epopeia ingente que assombra pela desproporção entre as forças da nação empreendedora e os resultados alcançados. Ganha assim universal significação o simbolismo lusista do pelicano. Os maiores, senão todos os problemas que a Europa tinha para resolver no final da Idade Média, Portugal os resolveu com as suas expedições marítimas. Descobrindo a rota oceânica das Índias, contornou o obstáculo turco e espalhou no Ocidente os produtos orientais. Ainda que de forma insuficiente para as necessidades europeias, animou o mercado dos capitais com o numerário fabricado com o oiro da Guiné e do Sudão. Introduziu novas culturas e novos produtos. Iniciou o período da navegação astronómica. Reforma o tipo de navios e tem parte essencial nos progressos da cartografia. Descobre, finalmente, os grandes itinerários marítimos para a África, Oriente e América». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT